2013/01/30

É cíclico, mas acabo sempre a ler o Poema temperamental, talvez porque os poemas digam mesmo o que os poetas não querem...

Poema temperamental
Joaquim pessoa

Ó caralho! Ó caralho!
Quem abateu estas aves?
Quem é que sabe? quem é
que inventou a pasmaceira?
Que puta de bebedeira
é esta que em nós se vem
já desde o ventre da mãe
e que tem a nossa idade?
Ó caralho! Ó caralho!
Isto de a gente sorrir
com os dentes cariados
esta coisa de gritar
sem ter nada na goela
faz-nos abrir a janela.
Faz doer a solidão.
Faz das tripas coração.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque não vem o diabo
dizer que somos um povo
de heróicos analfabetos?
Na cama fazemos netos
porque os filhos não são nossos
são produtos do acaso
desde o sangue até aos ossos.
Ó caralho! Ó caralho!
Um homem mede-se aos palmos
se não há outra medida
e põe-se o dedo na ferida
se o dedo lá for preciso.
Não temos que ter juízo
o que é urgente é ser louco
quer se seja muito ou pouco.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque é que os poemas dizem
o que os poetas não querem?
Porque é que as palavras ferem
como facas aguçadas
cravadas por toda a parte?
Porque é que se diz que a arte
é para certas camadas?
Ó caralho! Ó caralho!
Estes fatos por medida
que vestimos ao domingo
tiram-nos dias de vida
fazem guardar-nos segredos
e tornam-nos tão cruéis
que para comprar anéis
vendemos os próprios dedos.
Ó caralho! Ó caralho!
Falta mudar tanta coisa.
Falta mudar isto tudo!
Ser-se cego surdo e mudo
entre gente sem cabeça
não é desgraça completa.
É como ser-se poeta
sem que a poesia aconteça.
Ó caralho! Ó caralho!
Nunca ninguém diz o nome
do silêncio que nos mata
e andamos mortos de fome
(mesmo os que trazem gravata)
com um nó junto à garganta.
O mal é que a gente canta
quando nos põem a pata.
Ó caralho! Ó caralho!
O melhor era fingir
que não é nada connosco.
O melhor era dizer
que nunca mais há remédio
para a sífilis. Para o tédio.
Para o ócio e a pobreza.
Era melhor. Concerteza.
Ó caralho! Ó caralho!
Tudo são contas antigas.
Tudo são palavras velhas.
Faz-se um telhado sem telhas
para que chova lá dentro
e afogam-se os moribundos
dentro do guarda-vestidos
entre vaias e gemidos.
Ó caralho! Ó caralho!
Há gente que não faz nada
nem sequer coçar as pernas.
Há gente que não se importa
de viver feita aos bocados
com uma alma tão morta
que os mortos berram à porta
dos vivos que estão calados.
Ó caralho! Ó caralho!
Já é tempo de aprender
quanto custa a vida inteira
a comer e a beber
e a viver dessa maneira.
Já é tempo de dizer
que a fome tem outro nome.
Que viver já é ter fome.
Ó caralho! Ó caralho!
Ó caralho!

18 comentários:

  1. Nossa... Que biolência...

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  2. Joaquim Pessoa tem muitos poemas que eu gosto.
    Este 'digo-o' quando quero mandar tudo 'à fava'.
    Que lindo jogo de palavras.
    abc

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  3. conheço muito mal este poeta, só de folhear nas livrarias, por isso nunca tinha lido com atenção este poema.
    bjs.

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    1. Também não o conheço bem, mas este poema marcou-me bastante.
      Abraço

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  4. Gosto imenso do Joaquim Pessoa, que "conheci" através das canções do Carlos Mendes,mas este poema não conhecia. E gostei de conhecer...

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    1. Eu agora tenho que ir à descoberta dessas canções do Carlos Mendes :p
      Abc

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  5. É forte, mas acho que é o indicado para este País neste momento... o Facebook censura este tipo de poemas? LOLOL

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  6. Será falta de alguma coisa lololololol :P

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  7. Já conhecia mas desta vez que o li pareceu-me ainda mais pertinente e assertivo. Gosto bastante do JP, tanto da poesia como da prosa. E tem um contos muito bons.
    Abraço.

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    1. Não conheço os contos, mas vou descobrir.
      O poema é muito assertivo mesmo.
      Abc

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  8. Uma análise sintática ao poema revela um tema recorrente... não conhecia esta poesia.

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